From: Will <g.willvaz@gmail.com>
Date: 2011/1/23
Subject: [Polo de Cultura Digital] A leitura, uma notável atividade neurológica
To: polo-de-cultura-digital@googlegroups.com
Um estranho problema vivido pelo escritor canadense Howard Engel,
autor de livros cujo personagem principal é o detetive Benny
Cooperman, levou o médico e escritor Oliver Sacks a escrever um
intrigante ensaio sobre a leitura em "Um homem de letras" (O olhar da
mente, Companhia das Letras). Certo dia em 2002, Engel acordou, pegou
o jornal que parecia o mesmo de sempre, mas logo percebeu que não
conseguia ler uma única palavra.
Em uma carta que enviou a Sacks, ele descreveu sua dificuldade: "Eu
podia ver que as letras que o compunham eram as 26 letras do alfabeto
inglês com as quais eu estava habituado. Só que agora, quando eu as
focalizava, ora pareciam cirílico, ora coreano". Na primeira avaliação
neurológica, constatou-se que Engel estava também com outros problemas
visuais: dificuldade para reconhecer cores, rostos e objetos comuns. A
impossibilidade de ler era desesperadora: sua vida, seu trabalho e sua
identidade estavam ligados à leitura e à escrita de narrativas
elaboradas de crimes e investigações.
Mas, para seu espanto, Engel descobriu que podia escrever
perfeitamente, embora não conseguisse ler o que ele próprio escrevia.
O que ele tinha era uma "alexia sem agrafia", uma cegueira para
palavras. Ora, ler e escrever andam juntos; como é que ele podia
perder uma coisa e não a outra?, pergunta-se Sacks, explicando que
concebemos a leitura como um ato contínuo e indivisível, e quando
lemos prestamos atenção ao significado e talvez à beleza da linguagem
escrita, inconscientes dos muitos processos que a possibilitam. Só
quando encontramos um problema como a alexia é que percebemos que a
leitura, na verdade, depende de toda uma hierarquia ou cascata de
processos que pode ser interrompida em qualquer ponto.
Em todos os seus livros, Sacks parte de um caso médico, uma história
real, para escrever um ensaio que é ao mesmo tempo um texto científico
que pode ser lido por leigos, uma reflexão sobre a condição humana (em
seus aspectos naturais e culturais, sem qualquer reducionismo
biológico) e um conto literário sobre um caso\personagem que busca
conhecer e expandir as incríveis capacidades que as pessoas têm de
encontrar caminhos para conviver com dificuldades impostas por
limitações neurológicas (entre seus livros mais conhecidos estão O
homem que confundiu sua mulher com um chapéu e Um antropólogo em
Marte; sua autobiografia, Tio Tungstênio, e A ilha dos daltônicos são
também imperdíveis).
No caso do escritor canadense, Sacks investiga os processos
neurológicos do ato de ler: "A leitura, evidentemente, não termina com
o reconhecimento das formas visuais das palavras. Seria mais exato
dizer que é nesse momento que ela começa". A linguagem escrita
destina-se a comunicar o som das palavras e seu significado e esta
atividade cerebral tem conexões com as áreas cerebrais da audição e da
fala, com as áreas intelectuais e executivas e com as áreas úteis à
memória e à emoção.
Em princípio, a opção que parecia se apresentar a Engel era depender
da leitura de outra pessoa ou de áudio-livros, mas ele não queria
isso, porque envolveria uma "mudança radical na visualidade da
leitura, da aparência das palavras na página para um modo de percepção
essencialmente auditivo – na verdade, ouvir em vez de ler e, talvez,
falar em vez de escrever. Seria isso desejável, ou mesmo possível?". E
Engel, como escritor, queria voltar a ler.
Ao examinar pessoas em geral e pacientes com alexia, Sacks explica que
existe nos seres humanos letrados um "hemisfério da linguagem, um
sistema neuronal potencialmente disponível para o reconhecimento de
letras e palavras (e talvez outras formas de notação visual –
matemática ou música, por exemplo)", o que introduz uma pergunta
intrigante: por que todos os seres humanos têm esse equipamento inato
para ler se a leitura é uma invenção cultural recente, se a escrita
surgiu há pouco mais de 5 mil anos, evidentemente tempo curto para que
tenha sido um processo de evolução por seleção natural? "Embora a área
de formação visual das palavras no cérebro humano pareça ser
primorosamente sintonizada com o ato de ler, não pode ter evoluído
especificamente para tal propósito", pondera Sacks.
A resposta é fascinante: "Todos nós vivemos em um mundo de visões,
sons e outros estímulos, e nossa sobrevivência depende de fazermos uma
rápida e acurada interpretação deles. Compreender o mundo à nossa
volta tem de ser algo baseado em algum tipo de sistema, algum modo
rápido e certeiro de analisar o ambiente. Embora ver objetos,
defini-los visualmente, pareça ser instantâneo e inato, constitui na
verdade uma tremenda façanha perceptual que requer toda uma hierarquia
de funções. Não vemos os objetos como tais; vemos formas, superfícies,
contornos e fronteiras, que se apresentam em diferentes luminosidades
ou contextos e mudam de perspectiva quando se movimentam ou quando nos
movimentamos."
Desse caos visual complexo e mutável é necessário extrair invariantes
que permitam inferir a qualidade do objeto. Não seria econômico supor
que existem representações individuais (engramas) para cada um dos
bilhões de objetos ao nosso redor. A capacidade de combinação precisa
ser convocada e precisamos de um conjunto finito ou vocabulário de
formas que possa ser combinado de um número infinito de modos, assim
com as 26 letras do alfabeto podem ser reunidas (sob determinadas
regras) para formar quantas palavras ou sentenças forem necessárias a
uma língua.
Talvez alguns objetos possam ser reconhecidos logo que nascemos ou
pouco depois, por exemplo, os rostos, escreve Sacks. Fora esses,
porém, o mundo dos objetos precisa ser aprendido por meio de
experiência e atividade: olhando, tocando, manuseando, correlacionando
as impressões dadas pelos objetos com a aparência deles: "O
reconhecimento visual de objetos depende dos milhões de neurônios do
córtex inferotemporal, e nessa área a função neuronal é muito
plástica, aberta e altamente responsiva a experiência e treinamento, à
educação. Os neurônios inferotemporais evoluíram em função do
reconhecimento visual geral, mas podem ser recrutados para outros
propósitos – mais notavelmente, a leitura".
Isto é facilitado pelo fato de que os sistemas de escrita parecem ter
em comum certas características topológicas com o ambiente,
características que nosso cérebro evoluiu para decodificar. A análise
de mais de uma centena de sistemas de escrita, incluindo ideogramas
chineses, mostrou que mesmo sendo geometricamente muito diferentes,
têm em comum semelhanças topológicas básicas, e foram constadas
invariantes topológicas semelhantes em um conjunto de cenários
naturais.
Tudo isso não quer dizer que, mesmo durante a curta vida de um
indivíduo ou de uma sociedade, desenvolvimentos culturais e
individuais, selecionando pela experiência, podem se dar em uma escala
de tempo infinitamente mais rápida do que o da evolução. Quanto ao
escritor Howard Engel, após muitos meses, ele aprendeu um complexo
sistema de escrita e leitura, que incluía várias estratégias e o apoio
de um revisor que lia os textos, o que lhe permitiu continuar a
escrever, baseado em sua experiência e no mundo que passara a ser seu
cotidiano, publicando Memory Book (Livro da memória), em 2005, e The
man who forgot how to read (O homem que esqueceu como ler) em 2007.
Ambos tendo o detetive Benny Cooperman como personagem principal.
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Postado por Will no Polo de Cultura Digital em 1/23/2011 07:03:00 AM
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